quinta-feira, 27 de julho de 2006

A história da própria cabeça é a dos nossos dias


"Eu devia ter uns 7 anos. A professora sempre mandava a gente fazer composição sobre estampa de vaca, estampa de pintinho. Uma vez ela disse: ' Hoje cada um vai fazer uma história da própria cabeça ' . Foi nesse momento que eu comecei a ser Nelson Rodrigues. Porque escrevi uma história tremenda, de adultério."
(Entrevista concedida à Revista Playboy em novembro de 1979).
Sem controvérsias, o melhor que o teatro moderno brasileiro já teve. Mais uma vez, minha nostalgia inexplicável de uma época a que não pertenci vem à tona. Desta vez, e como tantas outras, o Nelson me toma de supetão e eu queria estar em seu tempo, naquelas ruas onde as mulheres de vestido e batom vermelho usavam salto e mostravam as pernas, rebolavam e paqueravam segurando com charme a bolsinha da cor do vestido debaixo do braço, passo apertado, sempre com muito feminino no jeito.
Naqueles anos, quando as noções de casamento e adultério foram transpassadas, modificadas, os jovens casais eram empolgados pelo proibido. Na verdade, Nelson os movia por esse instinto. E pelo trágico que o permeia, encontramos ali a realidade social do brasileiro dos anos dourados que vivia algum sabor. Ele contava a história da vizinha, a traição do amigo de trabalho, os tragos dos jornalistas em crise de consciência moral diante da pressão ideológica. O topete do malandro e os afagos em camas de outros donos.
Falo disso porque, nos tempos de hoje, o vazio tomou conta de tudo. Não temos o impulso pelo proibido saudável, a individualidade enfraqueceu o amor trágico e os filhos são projetos pra depois. A programação reina e ninguém tem o prazer gratuito de levar uma brisa no rosto às 16h da terça-feira porque a agenda está lotada. A esposa e o esposo são papéis de antigamente.
O nosso maior dramaturgo exibia as farsas da gente, os cotidianos que viraram peças de sucesso com a identificação imediata. Sabia do amor maior (por isso o trágico), conhecia as fraquezas das relações do dia-a-dia, falava como ninguém da paixão que ferve. 25 anos depois de sua morte, eu apenas intento as emoções do seu gosto vivido. A seguir, um depoimento do quão real eram aqueles causos:
"Durante 20 anos, durante toda a década de 40 e toda a década de 50, fui um homem absolutamente só. Combatido, me chamaram de tarado, de cérebro doentio. Poucas pessoas, algumas exceções como Gilberto Freyre, José Lins do Rego e Manuel Bandeira, me estimulavam. Mesmo o Manuel Bandeira chegou pra mim um dia, quando eu e meus personagens éramos odiados, e disse: ' Nelson, por que você não faz uma peça em que os personagens sejam assim como todo mundo?' Eu respondi da forma mais singela: 'Mas, meu caro Bandeira, meus personagens são como todo mundo.' Porque uma coisa é verdade: quem metia ou mete o pau no meu teatro está procedendo como um Narciso às avessas, cuspindo na própria imagem. "
(Ao JB em 14/04/80)

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