quarta-feira, 24 de outubro de 2007

O confronto


Ela chegou exausta e nem mesmo a batida da porta o fez piscar os olhos. Aqueles relatórios e aqueles prazos sempre mínimos o deixavam sempre à parte do universo dela. E Jack já agia assim há um bom tempo.

Ela passa e volta, tira os sapatos, senta no sofá espaçoso, comprado para dois, mas onde sempre só coube um. Solta os cabelos e um gemido de descanso. Mira a figura à sua frente e as torres de papel. Dorothy nunca gostou de papéis. Só conseguem ser acúmulo de lixo e passado. Ela concentra o olhar naquela imagem, absolutamente oposta ao que sempre quis naquele homem, que costumava rir e andar descalço. Levanta rápido e desmorona junto com as torres que acaba de implodir com as próprias mãos ao som de um "Pára!" e submerge nas ondas da banheira.

Nua, sente o frio em cada poro, mistura-se à água cheia dela, prende um pouco a respiração. Não era para ser assim, pensa e pede. O mundo foi injusto com Dorothy porque a fez entrar em seu próprio enigma. A não-garantia explícita à qual tantos se jogam sem medo. Mas o medo foi sempre seu grande amigo, o melhor refúgio para as oportunidades mais ousadas. Só mesmo Jack e os seus sorrisos para dar vez a um "sim". O mundo, aliado ao tempo, não deu tréguas ao rapaz, que preferiu cumprir obrigações a sonhar.

Ela, no universo paralelo somente seu, viaja nos pensamentos, nos sonhos mais impossíveis e, ao mesmo tempo, tão reais quando vividos ainda que como sonhos. Imagina dias lindos, chão de nuvens, asas de anjo e vôos rasantes, num mix louco de encontro da realidade com a fantasia. O coração acelera e ela já sorri sem perceber. A banheira é um oceano verde e seus cabelos se movem no ritmo das ondas. Isto sim é vida! Todos os sentidos à prova, liberdade, prazer, imensidade, infinito belo...
Jack entra no quarto e prepara-se para dormir:
- "Está aí?"
- "Não". Responde como um lapso, sem interromper a viagem.
- "Tudo bem, amanhã vou correr".

O vôo é acelerado, Dorothy percorre o mundo e vê as cidades sob seu corpo flutuante, os homens parecem bonequinhos de madeira numa mini-aglomeração. Tudo é tão pequeno para o seu infinito. As construções são tão perecíveis para o seu imaterial. Um mergulho no Atlântico exibe outra imensidão, outras formas e ciclos num ambiente mais denso e mais pesado como o aquático, seu preferido. Dorothy é dona de tudo o que é possível e impossível. O mundo e o que não existe também são dela. Salta da água como um peixe numa velocidade estonteante, vai rumo a qualquer outra galáxia, segue o caminho das estrelas mais brilhantes e sente o vento forte deformando suas bochechas de um jeito engraçado, quando, de repente... O despertador!

Hora do medicamento do marido esquizofrênico. A realidade amarra Dorothy mais uma vez ao mundo injusto. Corta suas asas, destrói seus desejos, elimina seu universo. Ela implora mais vez: "Pára!".

3 comentários:

DOROTHY YOUDEN disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
DOROTHY YOUDEN disse...

Estou até agora a divagar acerca dessa mulher indecifrável, enigmática, mas que parece ter os sentidos à flor da pele. Obrigada por me propiciar esse momento de reflexão!

JuHits disse...

=)